quarta-feira, 3 de agosto de 2011

GUIA ROMÂNTICO DE VENEZA

Este ensaio foi publicado pela primeira vez na revista The Algonkian, na primavera de 2002 e, posteriormente, atualizado pela autora Marlena de Blasi.

- Peguem um cobertor e sigam para a ilha de Torcello. Embarquem na motonave (ferryboat) no Lido, de preferência na que parte às 8h20. Sentem-se do lado de fora, principalmente se estiver frio, bebendo o cappuccino que vocês compraram no café Chizzolin, na Grand Viale. Ao desembarcarem em Torcello, passeiem um pouco e depois estendam o cobertor sobre os canteiros de grama alta que margeiam a via principal. Fiquem em silêncio para apreciar a tranquilidade ancestral do lugar. Visitem a Basílica di Santa Maria Assunta, construída no século XVII. Tomem um drinque na Locanda Cipriani e depois sigam para almoçar na ponte del Diavolo, pedindo uma mesa que seja atendida pelo garçom usando uma gravata salmão e com cabelos cheios de gomalina repartido ao meio. Se estiver em maio, peçam risotto com i bruscandoli (risoto com brotos de lúpulo).

- Planejem estar em Veneza no terceiro domingo de julho, quando acontece a Festa del Redentore, um festival no qual os venezianos celebram a si mesmos enquanto agradecem a Deus por ter livrado seus ancestrais da peste. Quando reservarem suas acomodações, perguntem se o hotel ou pensione pode ajudá-los a alugar um pequeno barco, a remo ou motorizado, para a tarde e a noite do festival ou, melhor ainda, reservem uma mesa para jantar em uma das embarcações maiores. Ser espectador, em vez de estar no meio da multidão na água, só é divertido se vocês tiverem a sorte de serem convidados para um palazzo com altana (terraço), de onde vocês podem ver e sentir o espetáculo. Nem cogitem a possibilidade de reservar uma mesa num dos restaurante ou bares às margens do canal, onde vocês pagarão caro e não verão quase nada. Apreciem o luar, as estrelas, as velas, os fogos de artifício, os pratos típicos e o vinho, os bandolins e as canções alegres, tocadas no mais esplêndido canal do mundo.

- Apreciem o ôr do sol no vaporetto Número 1. Embarquem assim que a luz começar a mudar, no Lido ou em San Zaccaria, e depois sigam até a estação de trem, ou então comecem o passeio na estação de trem e sigam em direção ao centro. Sentem-se sempre do lado de fora, bebendo Prosecco em flutes de cristal. Depois saiam para um jantar simples na La Vedova, que fica ao lado da Strada Nuova (a parada do vaporetto em Ca' d'Oro), e mandem um abraço meu* a Mirella e a Renzo - irmãos que dão à mais autêntica osteria de Veneza.

- Se estiverem na cidade durante o verão, depois do jantar sentem-se do lado de fora do Café Florian, bebendo Moscato - um vinho doce e cor de âmbar - gelado, ouvindo a orquestra e dançando ao som de Strauss - sem inibições e como se fosse a última dança de suas vidas. Olhem ao redor e vejam por que a Piazza San Marco é considerada a mais bela sala de visitas do mundo. Com a basílica pairando em todo o seu esplendor oriental às suas costas, vocês estarão dançando sobre as mesmas pedras da Ístria** sobre as quais cortesãs e nobres franceses e austríacos dançaram.

- Preparem um piquenique e embarquem num vaporetto rumo ao Lido, depois subam no ônibus Número 11 para i murazzi. Andem 100 metros ao lado da amurada de pedra à beira mar. Assim que encontrarem uma pedra lisa, comam ao som das ondas. Se vocês comprarem uma réplica de lanterna de bordo (na Maurizio Sumiti, uma pequena e discreta oficina de restauro na Calle delle Bande, no castello), podem fazer uma refeição à luz de velas à beira mar.

- Caminhem por Dorsoduro, o maior dos três bairros de Veneza situados "do outro lado do canal", que algumas pessoas comparam á Rive Gauche de Paris. Escondidos aqui e ali podem-se encontrar lojas, cafés e osteries* com um ambiente mais cosmopolita, inspirado pela comunidade em constante renovação formada por estudantes estrangeiros que vão à cidade por um ou dois semestres para pintar, esculpir ou estudar arquitetura nas sucursais das faculdades e universidades americanas e europeias. Dorsoduro começa na ponte Accademia, a única ponte de madeira de Veneza, construída em 1932 para substituir a grande monstruosidade de ferro erguida pelos austríacos no período e que governaram a cidade, no século XIX. Foi nessa ponte que, durante minha primeira passeggiata com o estranho, ele me olha como se quisesse me beijar e penso que também gostaria de beijá-lo, mas sei que o guarda-chuva e o jornal vão cair dentro d'água e, além do mais, nós já passamos da idade de protagonizar cenas de amor. Não passamos? Eu provavelmente iria querer beijá-lo mesmo que ele não tivesse olhos cor de mirtilo. Mesmo que ele se parecesse um poco com o apresentador de TV Ted Kopperl. É esse lugar, a vista dessa ponte, esse ar, essa luz***.

- Renovem seus votos na basílica do século XVII onde a Festa di Santa Maria della Salute é celebrada todos os anos no dia 21 de novembro, numa referência ao dia em que, depois de 12 anos de devastação, a peste foi erradicada por um milagre da Madona**. Depois saiam para jantar nos jardins perfumados de jasmim na Locanda Montin. Trata-se de um restaurante minúsculo, de uma Veneza mais antiga, talvez um pouco desgastada, mas que, sob o céu da noite que se ergue lentamente, com o vento quente da lagoa em sua pele, uma garrafa de Prosecco gelando num balde ao seu lado e um prato de canocie (camarões) levemente adocicado à sua frente, é o melhor lugar do mundo. Um belo vestido não destoaria do lugar.

- Ao anoitecer sigam para o bar no terraço do Hotel Monaco, mas antes verifiquem se não Ee a noite de folga de Paolo. Deixem que ele decida qual aperitivi preparará para vocês. Digam apenas: "Ci pensi lei" ("Você decide"). Afinal, foi Paolo quem encheu minhas botas com jornal e as colocou para secar junto ao fogo enquanto eu esperava que a tempestade passasse, naquela noite em que seria meu primeiro encontro com Fernando. E foi lá que paramos a caminho de casa no nosso primeiro dia juntos em Torcello. " Se eu pudesse dar Veneza a vocês por uma única hora, seria essa, e os acomodaria nessa cadeira, sabendo que Paolo estaria por perto, cuidando do seu conforto, certa de que a noite que chega para roubar aquela estupenda última luz também levará embora as suas mágoas. É assim que seria." A Veneza dos sonhos é a Veneza verdadeira.

- Façam um passeio pelo mercado de Rialto no início da manhã - por volta das sete horas - para admirar o espetáculo da preparação das barracas. Acompanhem os agricultores e peixeiros a seus bares preferidos para beber um cappuccino e comer um cornetti* quente, recheado com geléia de damasco, depois voltem para o mercado quando mais clientes começarem a chegar. Prestem atenção especial ao espetáculo na grande peixaria de cortinas vermelhas brilhantes, onde estão à mostra todas as criaturas marinhas que já nadaram ou rastejaram no fundo do mar Adriático. Às nove e meia, façam a primeira parada na Cantina do Mori, onde, ao longo, de mais de 500 anos ininterruptos, comerciantes, capitães de navios, vilões e reis de Veneza beberam bons vinhos no salão iluminado por um lampião. As circunstâncias extraordinárias de sua visita talvez lhes permitam beber uma dose matinal de Tokay gelado, que o belo Sergio tirará de um barril. Aproximem-se da pequenina vitrine forrada com tramezzini (sanduíches cortados ao meio) e outras maravilhas simples e escolha o café da manhã. Se vocês seguirem a dica dos habitantes locais, sairão para outro passeio pelo mercado, voltarão ao Do Mori para mais um café e continuarão nesta coreografia, vivendo uma manhã verdadeiramente veneziana.

- Visitem Veneza durante o carnevale - geralmente do meio para o final de fevereiro - e tragam suas próprias fantasias ou aluguem uma magnífica cópia de trajes de festa dos nobres do século XVII. Vistam uma bauta - uma típica máscara veneziana - e passeiem pela cidade ao anoitecer, em meio à névoa espessa caracterísitca da estação. Dancem na piazza, comprem ingressos para um entre dúzias de bailes divinos organizados nos grandes palazzi ao longo de todo o Canal e por toda a cidade. Ou então, por pura diversão, façam o que eu sempre faço: vestidos a caráter, façam uma passeggiata ao anoitecer, sigam para o Florian para um aperitivi e depois para Il Mascaron, na Calle Larga Santa Maria Formosa, onde Gigi Vianello prepara os melhores frutos do mar de Veneza.

- Reservem uma mesa no andar de baixo do Harry's Bar. Caminhem um pouco para abrir o apetite antes de cruzar aquelas portas simples e discretas e entrarem no mais civilizado salão de jantar e bebidas do mundo. Sirvam-se de um bellini (suco de pêssego branco com Prosecco) ou de um Montgomery (14/15 de gin e 1/15 de vermute - a mesma proporção que Hemingway** dizia que os ingleses usavam para ganhar as batalhas: 14 soldados ingleses para cada soldado inimigo).Quando estiverem prontos, vocês serão acompanhados até a mesa posta com esmero e servida com uma elegância única. Escolham entre as opções venezianas tradicionais, como sarde in saor (sardinhas banhadas em molho agridoce árabe) ou pasta e fagioli (uma mistura rústica de massa e feijões, que a torna saborosa e suculenta), ou um prato de outra região qualquer do norte da Itália, como um tagliolini* caseiro, servido com uma fartura de lascas de trufas brancas albanesas.


Texto retirado do livro autobiográfico Cem Dias em Veneza, de Marlena de Blasi. Um romance maravilhoso que é, atualmente, meu livro de cabeceira. 


Pequeno Glossário
:

* osteries - restaurante típico da Itá;i de comida caseira.
  cornetti - plural de cornetto, que significa croissant.
  tagliolini - clássico macarrão da Emilia-Romagna, região da Itália.

** Ístria - maior península no Mar Adriático.
   Madona - é o nome dado à representação artística da Virgem Maria, em pinturas e esculturas.
   Hemingway - escritor do livro O Velho e o Mar (
lindo!) e ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, em 1954.

*** Trecho citado pela própria autora do seu livro Mil Dias em Veneza (
vale a pena ler!).
    

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